segunda-feira, 23 de março de 2015

MEUS TEMPOS DE GURI




MEU TEMPO DE GURI


Texto de Luiz César da Rosa, Imbituba 19/03/2015.

1. Aconteceu que
no dia que nasci (13/05/1957) a terra escureceu e um vento sul forte fez as águas da lagoa se agitar em ondas gigantes ao ponto de deslocar as canoas do porto e trazer para os locais de barranco. “ERA A CRISA DA LUA” diziam as pessoas mais idosas e de acordo com a crença popular a criança parida naquele momento “ERA EMBRUXADA, NÃO VINGAVA”. Então eu era embruxado. Pode!

2. Aconteceu que no dia que nasci (13/05/1957), meu pai estava em viagem negociando gados em Lauro Muller. Uns quatro dias depois que o parto feito em casa pela parteira da comunidade Dona Daura, meu pai chegou e trouxe UM MACACO tipo sagüi que ganhara e o acomodou em numa árvore seca atrás de casa. Então surgiu um comentário que a minha “mãe pariu um macaquinho”, pois todos que passavam na estrada viam aquele macaquinho e foi então que uma senhora com uma criança (eu os conheci) foram visitar a mãe. Só que a senhora ao ver, era um LINDO BEBÊ e se admirou dizendo com espanto misturado com ignorância: “Ah. É uma criancinha, pensava que era um macaquinho!!!”

3. Aconteceu que
no caminho do morro, certa vez levavam um caixão de defunto num carro de bois, sendo que a roda bateu numa pedra ao fazer uma curva perto de uma beira profunda de barranco, sendo que o carro com caixão bois e tudo, caiu. Lá embaixo, um grotão com bananeira e muito mato. O dono retirou os bois e o carro, sendo que em seguida foi à procura do caixão e achou, mas sem o defunto. Procuraram por vários dias e nunca mais encontraram.


4. Aconteceu que numa Sexta-feira Santa, um homem desafiou a Fé e foi carnear o boi para vender a carne e não aconteceria nada. Então laçou o animal puxou por afiada faca e uma marreta e com um forte golpe na fronte o bicho cai no pasto, o veio começa a tirar o couro com cuidado para curtir e fazer tambor para as brincadeiras de boi de mamão e entrudo “perera” no carnaval, mas depois de um lado retirado e muitos curiosos aguardando... O referido animal se levantou e sai furioso com aquela parte de couro pendurada e sangrando muito, espalhando gente prá todos os lados, foi uma gritaria e correria só. Depois de pular e arrebentar cerca de arame farpado, o animal volta e deita desfalecido no mesmo local para ser tolhido.

5. Aconteceu que
no Ronco D’Água numa noite de lua nova, após escutarem estrondos da queda d’água e ouvirem zunidos que diziam ser o canto da sereia, um casal de noivos ao atravessar de um lado pro outro pisando em pedras, observaram que no meio da água corrente existia ouro que brilhava e barulhava ao bater entre as pedras e como era no exato local que uma menina morreu afogada, saíram correndo de medo.

6. Aconteceu que num local antes de chegar à comunidade, uma menina negrinha morreu ao subir a pé no meio do morrinho na estrada, junto a um matagal. Todos que passavam nesse local durante a noite espantavam-se com barulhos no mato, árvores balançavam mesmo sem vento algum. Uivos, ruídos e “tropelos” de animais, vultos e sobras estranhas eram vistos constantemente. O local ficou conhecido por “MORRO DA NEGRINHA”.

7. Aconteceu que
um cachorro já estava velho cego e com pêlos caindo, já não servia mais prá caçar então o dono entregou a espingarda e mandou os três filhos levarem o animal lá pro morro, bem no meio da mata fechada e darem fim no animal, para não deixar o animal sofrendo. Então os moleques pegaram uma corda amarraram no pescoço e levaram. Lá o amarraram em uma árvore e deram três tiros. Saíram de volta prá casa, certos que cumpriram a tarefa. Três dias depois o pai escutou um barulho no terreiro da casa e foi ver, era o tal cachorro de volta se rastejando. Então com um pau, o matou enterrando no fundo da chácara. O pai furioso, perguntou “o que vocês fizeram com o cachorro?” os três guris responderam: “matemo”.


8. Aconteceu que
o pai, muito valente e corajoso ia visitar a namorada montado em seu lindo cavalo e já de volta em meio à madrugada ao passar no lugar ermo, escuro e com muito mato o cavalo se assustou com um barulho das árvores e disparou então ele puxou da cintura uma peixeira, olhou prá trás e viu uma noiva vestida em branco que o acompanhava então meteu a faca ao meio, levava o cavalo que levantava as patas dianteiras em cima e nada. A noiva perseguia e ao chegar na 1ª casa (de um parente) que era construída conforme o costume com uma tranca, o pai pula do cavalo com altivez e mete os pés na porta arrebentando tudo. Cansado e assustado com a luta, senta-se, toma um café e descansa prá seguir a viagem. Depois disso nada mais aconteceu.

9. Aconteceu que
o defunto na “essa”, que era onde o defunto ficava sobre umas tábuas apoiadas em uma cadeira em cada ponta, para ser velado até que o caixão ficasse pronto, pois era feito dentro de casa se estivesse chovendo com muito barulho de martelo, serrote e muitas conversas. Muita gente rezando sendo que eu comandava a reza, foi daí que as tábuas não resistiram o peso do corpo do defunto e se quebraram ao meio ficando o tal defunto arcado com as pernas p/cima, foi gente pulando janela, correria prá todos os lados e eu fui terminar a oração na época conhecida por “Padre Nosso” lá no meio das bananeiras. Kkkkkk.


10. Aconteceu que
o pai muito corajoso e cavaleiro habilidoso, ao ir recolher os gados na Ilhota, acompanhado de um irmão tocando a manada caminho a fora, quando escutou um gemido então olhou prá trás e viu uma grande pedra da beira do caminho suspensa no ar meio ofuscado pela noite que se adiantava e acho que de medroso não quis voltar então atropelou os passos da manada. Porém passando-se mais de trinta anos a mãe levou uma camisa numa benzedeira na cidade e ela disse que o marido perdeu uma grande chance de ficar rico, pois embaixo daquela pedra que se levantou no caminho dos bois (Ilhota) havia muito ouro que era prá ele. Mas essa oportunidade era única e nunca mais se repetiria.


11. Aconteceu que o pai um pescador artesanal habilidoso praticamente todas as noites olhava pro céu e indicava para os três filhos que pescavam (eu não), qual o ponto da lagoa do Imarui onde se iria ter maior quantidade de camarões, geralmente pra mais de duzentas latas, sendo que cada lata cheia pesava 12 kg e ele acertava. Todos saiam dos ranchos das canoas à boca da noite e só voltavam no outro dia já perto da tarde. Mas existia um dia muito especial para os pescadores, caso o tempo de pesca estivesse ruim, nesse dia era certo que teria abundância era o dia de Santa Luzia, treze de Dezembro.

12. Aconteceu que
o pai e seus companheiros de pesca pegaram um peixe de nome miragaia, tão grande que fora preparado com enxada, machado e facão (eu vi), o tal pescado foi distribuído para os pescadores e ainda vendido para um senhor de Sertão da Estiva, que lotou a carroça.


13. Aconteceu que
nós, os quatros irmãos, numa grande canoa de canela preta de meu pai, fomos pescar na lagoa desta vez de caniço com iscas de minhoca, mas lá pelo meio da tarde, dois deles acabaram por se brigarem e um deles deu com o caniço na cabeça do outro sendo que o anzol ficou enterrado no couro cabeludo e daí se formou aquele alvoroço na canoa e começaram a remar de volta prá casa, então meu pai ao ver a gravidade da situação disse que levaria pro médico mas meu irmão fugiu prá chácara, porque tinha medo e meu pai, homem austero e muito habilidoso começou a amolar a navalha de barbear e um canivete de ponta, num instrumento de madeira com lixa muito utilizado pelos barbeiros e foi daí que meu pai saiu a procura (caça) pegou o laço e laçou o guri, o acomodou entre as pernas raspou o local e com a ponta do canivete muito afiado, escavou e cortou aquela posta de carne junto com o anzol, sendo que jorrava muito sangue, então minha mãe muito prestativa ajudou a socorrer o moleque e preparou uma bucha de borra de café (pó usado), lavou o local com salmoura quente e fez uma amarração (curativo) para parar o sangue, que demorou a estancar. O menino cresceu com a marca na cabeça e todos acham que um pouco dos miolos (cérebro). Kkkkkk


14. Aconteceu que
meu pai um dos maiores pescadores da época e eu fomos “pro mar” lá pela meia noite. Ele fumava e tarrafeava como cigarro na boca já que era preciso segurar a chumbada da tarrafa com a boca e eu ficava admirado, mas imaginando o toco de cigarro cair na hora de jogar a tarrafa e isso não acontecia. A noite escura com uma forte serração (neblina) e a luz de querosene muito usada tanto em casa como no mar, formava uma sombra atrás de mim e eu muito medroso achava que era assombração. Não remava direito, estava tremendo e dizia que era frio, mas lá pelo amanhecer, depois de pegar mais de cem latas de camarão, na hora do pai fazer o jogo da tarrafa nos desequilibramos e a canoa virou com tudo, eu nunca aprendi a nadar e não sei como eu fiquei dentro d’água grudado na borda da canoa e o pai muito furioso em segundos já estava dentro da canoa, ainda escuro ninguém viu. Meu pai depois de “brigar” um monte comigo eu só soluçava para “engolir” o choro, então começou a tarrafear no parado no local para resgatar o camarão já pescado, mesmo assim deu prá vender próximo das cem latas. Foi um “Deus nos acuda”.


15. Aconteceu que
um ladrão muito perigoso e conhecido nos arredores da lagoa do Imaruí (era do Sítio Novo), com o nome de Lica estava fugido da cadeia e muitos policiais estavam a sua procura, mas dificilmente era preso porque tinha muita habilidade de se esconder nas cavernas e tocas de pedras dos matagais nos morros da região. Esse ladrão por muitas vezes via os policiais a sua caça e ele nos topos das árvores ou encravado entre as brechas de paredões de pedra. Então (eu vi nos meus cinco a seis anos) que ao anoitecer era uma batucada de martelos das pessoas pregando as trancas e tramelas da portas e janelas, foi então que meu pai que era um homem habilidoso e corajoso pegou a espingarda de trás da porta e deu dois tiros em direção à chácara e gritou: MATEI! Foi aí que os homens encorajados saíram até com roupas de dormir e luz de querosene e pedaços de pau na mão por entre a chácara e foram também mato adentro e meu pai afirmava: “eu vi, é mais ou menos ali, perto do galinheiro” e nada! Conclusão: Acharam um Gambá, que fazia arruaça no galinheiro. E o Lica, nunca mais apareceu.


16. Aconteceu que
certa vez fui rezar num velório (era muito chamado) depois de fazer a “encomendação do corpo”, começa o enterro com o carro de bois já na frente da casa para levar o caixão feito em casa, por um habilidoso homem de nome João Palhinha. Lá fomos nós rezando o terço, se rezava uns quatro rosários até o cemitério, só que no meio da estrada os bois começaram a defecar, mas aquelas fezes fediam tanto que além da gente se livrar de atolar os pés, ainda tinha que suportar o fedor. Eu não sabia se rezava ou olhava pro chão, tinha que caminhar em zigue-zague. Foi um enterro sofrido e por outro lado engraçado.


17. Aconteceu que
eu e uma de minhas irmãs voltávamos da escola, que ficava distante de nossa casa mais ou menos um quilômetro, enquanto meus pais estavam também próximos à escola num engenho fazendo farinha, pois era época de “farinhada” e nós saímos acompanhado o caminhãozinho do “Bastião” carregado de telha, na subidinha do morro do seu Ibrahim, foi então que nos penduramos atrás e eu que era maiorzinho, quando o caminhão pegou velocidade consegui me soltar, mas minha irmã não. Eu gritei: solta, solta! E ela se soltou e caiu sendo arrastada pelo chão, se ralando toda naquele areão, chorando e apertados de medo de apanhar (levar uma surra), chegamos até em casa com ela toda ensanguentada, foi então que ela se enrolou na manta em cima da cama e eu me enfiei debaixo, ficamos bem quietinhos sem dar um suspiro que fosse e sem luz acesa. Meus pais chegaram e minha mãe foi logo interrogando: Ué, as crianças ainda não vieram da escola? E foi logo no quarto das gurias (era um quarto pras meninas e outro pros meninos), percebeu aquela menina toda coberta estava chorando e ensanguentada. Notou que eu estava soluçando em baixo da cama, pegou a vassoura de mato e com o cabo que era um pau de cafezeiro e foi-me furuscando até que saí. Apanhei (de bainha) o dobro, depois a mãe deu um banho de salmoura para limpar os ferimentos que ainda estavam com areia. Acho que ela tem marcas das cicatrizes nas pernas, nos braços, joelhos...


18. Aconteceu que certo dia um corajoso jovem (eu) vinha da casa da namorada à pé, trazendo nas mãos um coelhinho de chocolate recheado de balas, que ganhou de “presente de páscoa”, já passando a meia noite num percurso de aproximadamente cinco quilômetros e de repente ao passar em frente a uma casa, bem isolada das demais havia um velório com umas quatro pessoas, então cheio de coragem para ver se tinha alguém para vir com ele, deu meia volta e como não tinha ninguém para acompanhá-lo, visto que perto de terreno do falecido Nestor tinha uma velha e enorme figueira para passar perto, tudo escuro, haja coragem! Passou, mas logo em seguida escutou um barulho de RELINCHAR DE CAVALO, correu... O coelho foi parar numa pedra, foi bala pra todos os lados... Olhou prá trás e avistou um enorme cavalo que dormia (em pé) com a cabeça pro lado de fora da cerca. Ficou bala, ficou chocolate, fuçou tudo... Chegou a sua casa só com as “orelhas do bichinho de páscoa” e com a “língua de fora”, todo suado. Kkk

19. Aconteceu que
o pai muito contador de história contou que morreu uma pessoa muito rica, então de caminhão foram comprar o caixão na cidade, mas chovia muito e já de volta trazendo o lindo caixão na carroceria foi então que um negão pediu uma carona, mas como na cabine não cabia mais ninguém disseram que só em cima e o negão subiu, mas a chuva aumentou então ele abriu o caixão e se enfiou prá dentro. Mais adiante outro “cabra macho” pediu carona também, então disseram: “Sobe, já tem um aí em cima, vai com ele” e como olhou viu apenas o caixão, pensou: tem um, mas tá morto! Tá bom. No embalo do caminhão para a subida do morro do Manduca o negão abre o caixão e pergunta: “PAROU A CHUVA?”. O “cabra macho” pulou do caminhão em disparada no meio do matagal. Foi um “Deus nos acuda”.

20. Aconteceu que no alto do morro num lugar chamado Três Coqueiros, certo homem que vivia olhando os urubus, calistos e caranchos a voarem bem alto e passou a fixar a ideia de que podia voar, foi então que ele foi à cidade para comprar um guarda chuva enorme, dois dias depois, lá no meio do mato tinha uma enorme árvore de Garapuvu, perto de uma grande pedra no alto do morro, o aventureiro escalou a pedra e passou a subir por entre os galhos até atingir o ponto mais alto da referida árvore, sendo que de lá em cima dava de ver até o Mar Grosso, então amarrou em volta da cintura uma corda e armou o enorme guarda chuva, contou alto a ecoar entre a mata: Um... Dois... Três... E despencou... Atirou-se segurando firme pelo cabo do instrumento “voador”. Caiu em meio a uns espinheiros e outras árvores nativas, rolando aos gritos morro abaixo... Estrepando-se todo. Nunca mais quis saber de voar. Kkk

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